quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Sem salvar



De repente, perto dos 40 anos, Ferdinando descobriu que não sabia mais escrever. Logo ele que passou a vida toda recebendo elogios dos professores por suas redações na escola e na faculdade, que bolou as frases mais espertas para a publicidade e ainda se meteu a conquistar meninas com poemas ritmados, alguns até em soneto. Agora, senta-se à frente do computador e as palavras não vêm. É como se a cabeça e a alma estivessem vazias. Tornou-se um robô ou um personagem mal-acabado de si mesmo.

Um dia, meio para tentar um tudo ou nada, teimou que ia voltar a escrever em alto nível. A ideia era fazer um romance – todo mundo respeita quem escreve um romance, pensou. Abriu o Word e começou a botar as primeiras palavras. Mas não tinha repertório nem para chegar ao fim do primeiro parágrafo, quanto mais um livro de 200 páginas. Decidiu, então, dar uma volta pela rua, para ver se a sua cabeça voltava a ser fresca.

Pensou na própria vida até então. Há uns anos, era um ser cheio de entusiasmo por qualquer tipo de assunto. Daqueles que adoravam versar em mesa de bar como Luiz Gonzaga era maior que os Beatles – e a sério, dando detalhes sobre a vida e a obra do compositor pernambucano, mesmo que boa parte das pessoas já tivesse saído de fininho da mesa. Ou que olhava para uma mulher de cabelos castanhos encaracolados e sentia de pronto que ela poderia ser a mãe dos seus filhos. Ultimamente, não tem paciência para ouvir sequer os primeiros acordes da sanfona de Gonzagão e sabe que mulher é só problema, sempre foi. Ao menos com amor.

Ferdinando lembrou como passou anos debochando da vida, das pessoas. E como o deboche se tornou um vício. E, como todo vício, o começo é prazeroso. No início os amigos se divertem com suas observações ferinas em relação a tipos sociais e comportamentos. Mas o sucesso sobe à cabeça. Quando se vê, não tem mais sensibilidade para diferir as pessoas. Todas estão em caixas. As caixas sociais até fazem sentido. Com o tempo, porém, quem sai perdendo é o encaixotador.

Sente saudade quando suas qualidades eram exaltadas com uma facilidade incrível. Com 15 anos, por exemplo, o fato de conhecer de cor todas as músicas do Chico Buarque e Beto Guedes era motivo de elogios rasgados dos mais velhos. “Nossa, esse menino é inteligentíssimo”. Hoje, não faz diferença alguma. Os seus conhecimentos são inúteis. É como se todos que não conheciam as músicas de Beto Guedes tivessem o passado na corrida para serem pessoas melhores – até por não serem tão exaltados na infância. Já ele ficou parado no tempo, envaidecido com os elogios que recebeu na adolescência.

A conclusão da caminhada é que ele tinha virado uma toupeira e não sabia mais como sair da armadilha que criou para si. Não adianta tentar escrever enquanto não aceitar melhorar de verdade, não apenas para impressionar as pessoas. Um dia ele foi bom, mas passou. Hoje, sabe que é um Garrincha da escrita. Mas na fase do Corinthians. E fechou o Word. Sem salvar.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Última saída

O jogo estava perto do encerramento no Pacaembu. Mais uma partida normal, mais uma vitória sobre o Flamengo, se a peleja válida pela segunda rodada do Campeonato Brasileiro não representasse a despedida oficial dos corinthianos de sua casa por décadas, para, depois, fazerem nova morada no moderno estádio da zona leste.

Ao trilhar do apito do árbitro, a torcida ficou desnorteada. Eu estava ali e vi. Sem nada combinado, sem a intervenção do histérico departamento de marketing do Corinthians, os 39 mil alvinegros presentes ao estádio do povo paulistano não derem um passo sequer em direção à saída. Eram 39 mil saudosistas e desorientados corinthianos.

A maioria ficou estática, admirando o gramado, a curva arquitetônica acima do portão principal, os refletores, qualquer detalhe que passou despercebido e que no dia representava uma dolorida última olhada. Outros andavam de um lado para o outro, como para pisar de forma derradeira no piso frio do cimento do Tobogã.

Não havia cantorias nem provas efusivas de amor. Era a sensação de quem compra uma bela casa nova, após muita labuta, mas se despedaça o coração de largar a saudosa maloca alugada. Foram uns 10 minutos de puro e absoluto silêncio. Interrompido, apenas, por um sujeito mais sentimental ao meu lado, de uns 40 e poucos anos, que chorava de soluçar.

Eu comecei a subir os degraus em direção à saída. Quando entrei na passarela que leva ao portão, ouvi o primeiro cidadão ao meu lado a murmurar: “Timão eô, Timão eô, Timão eooô”. Não que a mesma cena já não tivesse se repetido mil vezes. Mas nunca com tanto respeito e reverência, como se fosse em uma procissão. É isso que aconteceu na saída dos torcedores do Tobogã: a mais sincera procissão em reverência a um dos mais importantes símbolos religiosos de boa parte dos paulistanos.

O “Timão eô” se tornou um exclusivo uníssono. Ninguém ousou gritar sequer um “Vai Corinthians!”. Foi um mantra como deve ser, com respeito e profundidade. O coro acompanhou os pretos e os brancos até o caminho da rua. Dali, cada um seguiu a sua rota. Com a melancolia de saber que nunca mais fariam o caminho inverso. O Pacaembu se tornou apenas uma foto no coração. Mas como dói.