terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

"O povo brasileiro já não se julga um vira-latas"

No fim do ano passado, recebi a missão do Almanaque Brasil de fazer uma “entrevista póstuma” com o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, em homenagem ao centenário de seu nascimento. A proposta era a de ler seus incontáveis escritos e, a partir deles, bolar uma entrevista de perguntas e respostas.
 
Passei dois dias inteiros trancado em uma biblioteca em meio a mais de 10 livros do pernambucano. A missão foi dura. Comprovei, como já suspeitava, que não há uma crônica, uma página, um parágrafo, uma linha de Nelson Rodrigues que não renda uma grande resposta. Talvez seja o homem que menos tenha desperdiçado palavras durante a longa vida de escritor.

Abaixo, o resultado do “bate-papo” com o maior carioca nascido em Pernambuco de todos os tempos. Obrigado, Nelson Rodrigues, por me conceder a melhor entrevista da minha vida.

Você realmente acredita que as pessoas da vida real são tão mórbidas e vis como em suas peças e contos? A ficção, para ser purificadora, tem que ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. E no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a plateia é preciso encher o palco de assassinos, adúlteros, de insanos, e, em suma, de uma salada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los.

Em 1957, você atuou na peça Perdoa-me por Me Traíres, de sua autoria. Não teve medo de passar vergonha por não ser um ator profissional? Absolutamente. E digo mais: só os imbecis têm medo do ridículo. Considero um soturno pobre-diabo o sujeito que não consegue ser ridículo de vez em quando. Além do mais, o ator possui uma técnica, uma tarimba, um charme, que o envaidecem. Ao morrer em cena, não conseguem esconder sua satisfação ilimitada de estar morrendo tão bem. Não lhe ocorre que o personagem morreria mal, morreria pessimamente.
A sua peça Vestido de Noiva é considerada o marco inicial do moderno teatro brasileiro. Como vê o teatro nacional desde então? Não sei se notaram, mas o nosso teatro anda inteligentíssimo e de uma inteligência insuportável. Nem sempre foi assim. Por toda a Belle Époque e até 1930, o teatro não pensava. Cada qual fazia as coisas simples e profundas no seu métier. O ator começava e acabava no palco. Cá fora, na vida real, babava fisicamente na gravata. A atriz, idem. E o contrarregra não passava de contrarregra. Por isso mesmo, o teatro chegava mais depressa e com um impacto mais firme e mais puro ao coração do povo. Havia o sucesso, sem o qual, diz Jouvet, não há teatro. Um dia vi uma peça minha em São Paulo. Se o jovem diretor não fosse inteligente, seria fidelíssimo ao texto. E, então, o público veria O Beijo do Asfalto, e veria Nelson Rodrigues. Desgraçadamente, estávamos diante da inteligência. Todos autorizados a improvisar.

Você costuma dizer que a beleza é uma desvantagem para a mulher. Por quê? A beleza feminina é uma terrível enfermidade. De fato, a beleza causa na mulher um desgaste interior, macio, insidioso, fatal. E, no fim, a mulher bonita se volta contra si mesma, com tédio e ira de todos os seus dons plásticos. Toda mulher bonita leva em si, como uma lesão na alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma. Olhe a Marilyn Monroe. Morreu tão linda e tão só.

Mas a ditadura da beleza está aí, exigindo medidas perfeitas, corpos magros... Nenhum gordo gosta de ser gordo. Sobe na balança e tem um incoercível pudor, uma vergonha convulsiva do próprio peso. E, no entanto, veja: pior do que ser gordo é o inverso, quer dizer, pior do que ser gordo é ser magro. É preciso ver os magros com a pulga atrás da orelha. São perigosos, suscetíveis de paixões, de rancores, de fúrias tremendas. E, até hoje, que eu me lembre, todos os canalhas que conheci são, fatalmente, magros. A banha lubrifica as reações, amacia os sentimentos, amortece os ódios, predispõe ao amor. Nós temos, aqui, um preconceito, de todo improcedente, contra a barriga. Erro crasso. Na verdade, há uma relação sutil, mas indiscutível, entre a barriga e o êxito, entre a barriga e a glória.

Por que passou a escrever tanto sobre política? Eu sou um ex-covarde. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos. Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Depois de tudo o que passei, meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: “Sou um ex-covarde”. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Vermelho ou de Mao Tsé-Tung, ou de Guevara. Antigamente, o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar um cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. Simplesmente, não pensava. Os "melhores" pensavam por ele, sentiam por ele, decidiam por ele. Deve-se a Marx o formidável despertar dos idiotas. Estes descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas.

Mas há muita gente boa que defende o marxismo... Quando esteve por aqui, Jean-Paul Sarte deu uma entrevista coletiva. Em um momento, cravou o seu olhar na cara mais próxima e disse: “O marxismo é inultrapassável”. Não houve um murmúrio, um muxoxo, um oh, nada, nada. Está claro que era uma opinião de torcedor do Bonsucesso. Mas o gênio pode ousar opiniões de torcedor do Bonsucesso. De mais a mais, Sartre tinha, ao seu lado, a língua francesa, a prosa francesa. Qualquer bobagem em francês soa como uma dessas verdades inapeláveis e eternas. E não ocorreu a ninguém que, dali a 15 minutos, o marxismo poderia estar mais ultrapassado que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Dizia o Otto Lara Resende: "O cinema é uma maneira fácil de ser intelectual sem ler e sem pensar". Mas não só o cinema dá uma carteirinha de intelectual profundo. Também o socialismo. Sim, o socialismo é outra maneira facílima de ser intelectual sem ligar duas ideias. Minhas últimas palavras seriam: “Marx é uma besta”.


Ainda perdura o racismo no Brasil? O Brasil gaba-se de sua democracia racial. No entanto, poderíamos indagar uns aos outros: “E os negros? Onde estão os negros?”. É uma pergunta sem resposta. Um visitante ilustre passou um mês no Brasil. E, de repente, vira-se para a grã-fina brasileira que o acompanhava. Perguntou com uma irritação quase imperceptível: “E os negros? Onde estão os negros?”. Só via, e só esbarrava, e só tropeçava em brancos e brancas. Num amargo escândalo, constatava que o Itamaraty é uma paisagem sem negros. Quando foi embora, o rapaz do Itamaraty, que o fora levar, respondeu com a maior polidez e descaro: “Realmente, não temos uma grã-fina preta”. Aqui, ser preto é provar todas as renúncias. Lembro-me de um mulato que, no pileque, ficava repetindo, obtusamente: “Parece que tem um preto aí, o Zé do Patrocínio”.
O brasileiro não gosta do Brasil? Os cretinos fundamentais desprezam o Brasil. As grã-finas da desprezam o Brasil. Uma delas me dizia: o Brasil é um país de quinta ordem. Eu quase lhe disse, mas não disse porque sou tímido: por que a senhora não vai lavar um bom tanque? Eu conheço pessoas tidas como inteligente que desprezam o Brasil. Mas o Brasil vai substituir os Estados Unidos, a Rússia. O Brasil vai dizer a grande palavra nova. O brasileiro é um sujeito formidável. É um sujeito que faz piada, nenhum povo faz piada. Acontece qualquer coisa: uma chanchada, uma catástrofe, o brasileiro inventa uma piada na hora. Olhe todos os homens das outras terras: nenhum consegue ser cafajeste. O brasileiro é cafajeste. Digo cafajeste como um sujeito que planta bananeira até num velório.

Vamos falar de futebol. Qual é a importância do esporte para o povo brasileiro? Diziam que até 1958 no Brasil tinha analfabeto demais. A Copa da Suécia operou um milagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização súbita. Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra de todos os tempos, o Brasil descobriu-se a si mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vitória nos seus limites estritamente esportivos. Ilusão! Os cinco a dois, lá fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de todos nós e de cada um de nós. Ninguém tem mais vergonha da sua condição nacional. O povo já não se julga mais um vira-latas. O brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro.
Mas, em contraposição ao nosso complexo de vira-latas, não podemos nos tornar uma nação de vaidosos e soberbos? Vou lhe contar uma história: uma senhora brasileira foi recebida pelo papa no Vaticano. Ao se despedir, Sua Santidade pediu, num sussurro: “Reze por mim”. Podia ter essa humildade porque era o papa. Devemos deixar a modéstia, a humildade, para os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Itália, o Japão. Nós precisamos de mania de grandeza. A mania de grandeza é o nosso único luxo de subdesenvolvimento.

Entre todos os boleiros, você sempre dedicou especial atenção ao Garrincha. Por quê? Esse rapaz da raiz da serra compensou-nos de todas as nossas humilhações pessoais e coletivas. De 1958 a 1962, o mais indigente dos brasileiros pôde tecer a sua fantasia de onipotência. Na primeira bola que recebia o povo já começava a rir. O povo ria antes da jogada, da graça, da pirueta. Ria adivinhando que Garrincha ia fazer a sua grande área como ópera. Como se sabe só o jogador medíocre faz futebol de primeira. O craque, o virtuoso, o estilista prende a bola. Sim, ele cultiva a bola como uma orquídea de luxo. Todos nós dependemos do raciocínio. Não atravessamos a rua, ou chupamos um Chica-bon, sem todo um lento e intrincado processo mental. Ao passo que Garrincha nunca precisou pensar. Garrincha não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e irresistível do instinto. E, por isso mesmo, chega sempre antes,sempre na frente, porque jamais o raciocínio do adversário terá a velocidade genial do seu instinto. 

Qual a sua religião? Eu sou profundamente cristão. Mas eu só entro nas igrejas vazias. Na minha opinião, os crentes e o padre é que estragam a missa. A solidão começou para o verdadeiro católico. Tome nota: ainda seremos o maior povo ex-católico do mundo.

O que acha da morte? Eu tenho uma certeza: a alma é imortal. Tenho o maior desprezo por todos que não acreditam na eternidade da alma.