segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A menina dos olhos de ardósia

A paulistana se meteu em Paris. Sem nunca ter saído do Brasil, começa a caminhar pelas ruas estreitas do centro histórico da Cidade Luz. E o que não é histórico por aquelas bandas? Mas sua andança não é animada, e sim contemplativa. Olha a arquitetura de séculos atrás, as pessoas bem-vestidas, ouve a língua “mais elegante do universo”, segundo própria definição (que ela achara originalíssima). Observa homens brancos e magérrimos bebendo vinhos em bares com mesas na calçada. Fica pensando se eles são ricos ou se é apenas a versão francesa de comer coxinha no bar. Deixa pra lá. Continua a caminhada.

Era pra estar feliz. Não está. Aos 28 anos de idade, sente tudo fora de lugar, de contexto, de ritmo. É um nó no peito que ela não sabe onde começa e termina. Sem solução, caminha, caminha e caminha...

Lembra da infância complicada. Tinha bons motivos pra não dar certo na vida. Família pobre. Escola estadual. Bairro perigoso. Axé music. Manos. Minas. Favela. Poderia ser uma dona-de-casa honrada e zelosa. Uma recepcionista engraçada mas organizada. Uma jogadora de vôlei fracassada. Uma auxiliar de enfermagem, talvez.

Mas insiste em ter algum direcionamento profissional que aqueçam as idéias. Ela não é um poço de equilíbrio emocional, mas aprendeu a esconder a confusão mental por trás do sorriso e dos olhos mais bonitos que a Chapada Diamantina. São verdes, verdes mesmo. Mais do que a camisa do Palmeiras (aquela da Academia, não esta mais moderna - e escura). A boca tem o contorno mais simétrico já visto. Quando o sorriso e os olhos se abrem é um acontecimento. Como qualquer acontecimento, deveria ser raro. Mas ela distribuiu quase como se estivesse em queima de estoque.

A sua voz impressiona. Há um escritor (mentira, melhor confessar logo; a idéia é minha, mas falar “há um escritor” dá mais credibilidade) que diz que há vozes terapêuticas, que acalmam progressivamente. E esta é sua voz, calma mas viva, doce e literalmente viciante. Pra resumir, caro leitor: é uma voz bonita, bem bonita.

Onde estávamos? Ah, que ela tinha bons motivos pra ter uma vida meia-boca. Mas, mesmo desorganizada, pôs a meta de ser uma pessoa que saberia tirar o melhor da vida difícil para se aproximar de uma vida ideal, com livros, pessoas interessantes e música, muita música. E assim fez.

Teve um trabalho que lhe dava dinheiro, mas não alegria. Como todos sabemos, dinheiro é bonito, e manteve-se lá, firme e forte, pra ser inteligente nas horas vagas. Depois de um tempo achou pouco, e resolveu tentar ganhar dinheiro e ser inteligente ao mesmo tempo. Aí achou que não era tão inteligente, e se arrependeu um pouco. Mas já tinha “pedido as conta na firma”. Tarde demais.

Esse foi apenas o caminho profissional, contado de forma resumida, pois confio na sensibilidade do leitor de entender a macro-história (ou talvez eu não tenha nascido pra escrever detalhadamente, o que é uma pena). A vida amorosa – a única coisa tão importante quanto ganhar dinheiro – também foi estranha.

Pior do que ser gostosa e ter um monte de homem tosco atrás pra dar uns apertos, é ser linda e ter fama de “graciosa”. Essas características atraem um bando de gordinho carente acreditando que achou “a mulher pra casar”. E dar foras nesses gordinhos é uma das missões mais ingratas da vida. Não só porque eles se ofendem. Mas principalmente porque não entendem foras, definitivamente. Sempre pensam que a menina está numa “fase difícil”. Aí tentam de novo...

Ela namorou uns caras pelo inconsciente interesse pelo currículo. Afinal, quando alguém legal gosta de nós, nos tornamos legais também. Namorou outros que a tratavam oficialmente bem, mas que tinha uma distância emocional que a incomodava. “É fundamental morrer de amor pelo outro”, sempre pensou. Quando morriam de amor, porém, só pedia tranqüilidade. E agora não sabe mais o que quer. E voltamos pra caminhada em Paris...

“Não sou tão inteligente”, “Quero um amor apaixonado”, “Quero noites de cerveja que me surpreendam e me façam felizes”, "Quero me perder pelo mundo", “Estou meio velha mas sou boa no que quero fazer. Será que alguém vai concordar?”, “Preciso de dinheiro”, “Preciso de amor”, “Preciso de um namorado que eu possa gritar com ele de vez em quando”, “Não sei do que preciso, caralho!”.

Acima estão os pensamentos (in) coerentes que teve enquanto Paris continuava a existir alheia a sua presença. A cidade não pára, tal qual sua cabeça. Como ela não conclui nada, este texto se sente na liberdade de não ter conclusão alguma também. Ela passa por um derradeiro delírio “Ah, como seria bom ter o Chico Buarque pra conversar um pouco agora. Só ele me entenderia – E só ele me faria me entender”. Tá certo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O bloco do Oscar

João encara o grande museu feito por Oscar Niemeyer, postado entre as rochas e o mar de um dos principais bairros de Niterói. Parece um disco voador ou, quem sabe, uma miragem. Mesmo sendo do prestigiado arquiteto, a visão é mais bonita do que a expectativa. A chuva cai e está anoitecendo. O Corcovado já não é mais visível do lado menos glamouroso da Baía da Guanabara. As pessoas que seguem o bloco carnavalesco parecem que esbarram menos em seu ombro. A música das baterias, pandeiros e trombones fica em terceiro plano, soando apenas como um pequeno zumbido. As águas do céu o molham confortavelmente. João pensa em como é bom se surpreender, e passa os olhos pela passarela em forma de serpente que leva à entrada. Fica boquiaberto e surge um sorriso quase infantil em seu rosto. “Vamos, porra”, grita Paulo. Caso se percam, será difícil voltar à Lapa, bairro em que estão hospedados. Ambos dependem da carona de uma terceira pessoa, Maria, que está no front do bloco, com uma mini-fantasia de Cleópatra cercada de homens mais mal-intencionados do que Júlio César.

“Vamos tirar a Maria do meio daqueles tarados. Ela ta bêbada pra cacete”, grita Paulo, mais preocupado com a carona do que com o bem-estar da menina. Puxa o amigo pela junção do braço e antebraço, para tirá-lo daquela contemplação considerada inútil. “Amanhã você compra um postal. Museu não combina com carnaval, pô!”. João finge que concorda, e começa a andar rápido entre as pessoas dançantes. Enrolado em todas as serpentinas do carnaval, enfim ultrapassa a bateria. Encontra a menina de cabelos vermelhos quase agarrada com um pit-boy sem camisa e com boné da Raça Fla para trás. Paulo a interpela: “Tá anoitecendo, Maria, e essa chuva já ta enchendo. Vamos continuar na Lapa”. O flamenguista não gosta da interrupção, e o encara como se fosse aplicar um mata-leão. Percebendo o perigo, João se mete entre os dois, empurra o cara com o cotovelo – mas sem força – e diz que a amiga está passando mal, que realmente precisa ir embora. Não se sabe bem porquê, mas o pit-boy balança a cabeça afirmativamente, diz que o melhor é que cuidem da menina e se perde na multidão, cantando a marchinha “Bafo-de-Onça”. Paulo e João sorriem aliviados. Maria bufa, mas concorda em ir para o Rio.


Entre a ponte

O Palio está na Ponte Rio-Niterói, pela pista da direita. Segue no máximo a 60 quilômetros por hora. João está no comando, enquanto Paulo dorme ao seu lado, com a cabeça encostada na porta. No banco traseiro, Maria fala sem parar, lembrando dos “gatinhos maravilhosos” que havia nas ruas niteroienses. O motorista não quer saber de nada. Liga o som do carro. Um locutor com voz empolgada (e quase brega) afirma aos berros que o carnaval carioca é o maior espetáculo da Terra. O som é novamente desligado.

Já na alça de acesso ao centro do Rio, Paulo acorda e diz que está a fim de continuar em algum bar da Lapa. Maria concorda: “Não volto para a casa de forma alguma”. João não diz nada. Leva a dupla para uma rua atrás dos arcos e se despede. Segue, sozinho, para a casa. Deixa o carro no estacionamento e sobe pela escada os seis andares do prédio decadente. Abre completamente a janela e, enquanto a brisa geladíssima invade a casa, tenta encontrar a ponte. Busca Niterói. Procura o monumento do Oscar, agora deste lado da Baía. Mas a neblina não deixa.